Em Babel, R. F. Kuang, mesma autora de A Guerra da Papoula, nos apresenta a uma ficção especulativa, misturando eventos históricos reais e elementos fantásticos. A história se passa na década de 1830 e tem início na cidade de Cantão, na China. Um menino, que será chamado de Robin Swift, perde toda a sua família para a Cólera. À beira da morte, o menino é resgatado por um homem misterioso que será seu tutor daqui pra frente, levando-o para viver com ele em Londres, dando-lhe moradia, comida e educação. Em troca, Robin deverá se dedicar ao estudo das línguas e, futuramente, ingressar na Universidade de Oxford, onde está localizado o Real Instituto de Tradução, um prédio de oito andares também chamado de Babel, em referência à Babel bíblica.
O sistema de magia criado por Kuang consegue ser muito simples e muito complexo ao mesmo tempo. A magia aqui é canalizada em pequenas barras de prata. Mas o real elemento mágico são as palavras, já que a prata serve apenas como um veículo para a magia. Em cada lado dessa barra de prata se escreve uma palavra, em duas línguas diferentes, e a prata manifesta exatamente aquilo que se perde na tradução, ou seja, aquela lacuna entre o significado real da palavra original e o significado aproximado da palavra traduzida. Confuso? Um pouco, mas a autora dá diversos exemplos ao longo do livro que vão tornando mais fácil compreender.
O fato é que, para ser capaz de utilizar essa magia, a pessoa precisa ser falante das línguas impressas na prata. Não basta ler a palavra, nem mesmo conhecer a língua superficialmente. É necessário ser fluente e ter total domínio da língua. Por isso, os estudantes de Babel costumam ser estrangeiros que passam boa parte do seu tempo estudando diferentes línguas para serem capazes de produzir barras de prata mágicas. É para esse trabalho que Robin é treinado desde criança. E para onde vão essas barras mágicas? Bom, é aqui que começa o problema. As barras são um produto caro e sua produção e comercialização se concentra na Grã-Bretanha. Isso, para alguns, é uma forma de "exploração deliberada de cultura e recursos estrangeiros" (palavras de um certo personagem que vai surgir no livro pra deixar nosso protagonista confuso).
Robin é apaixonado por esse mundo, por Babel, pelos amigos que conheceu na Universidade e pela magia da tradução. Tão apaixonado que, inicialmente, ele nem se importa de estar se afastando das suas origens. Afinal, a vida que ele tem agora é tão melhor do que a vida na China. Mas será que tudo isso está certo? O conflito moral do personagem é um dos pontos que Kuang vai explorar. Mas são tantos outros pontos que se destacam nessa história que é até difícil pontuar. Acho que já ficou claro que Babel fala sobre colonialismo, sobre o valor da cultura e da língua, sobre usar os recursos de um povo para construir riqueza para outro povo. E Kuang não tem medo de ser ácida em sua escrita.
Robin é o tipo de protagonista que o leitor não vai amar justamente porque ele é muito real. Senti raiva dele em muitos momentos porque ele é covarde, prioriza as escolhas mais fáceis e é egoísta. Ele não é o típico herói que coloca o seu próprio bem-estar em segundo lugar para priorizar o bem comum. Ele é confuso e adora ficar em cima do muro... Pelo menos até o muro desmoronar. Robin, inevitavelmente, vai perceber que os dois lados não podem prosperar juntos. Para Babel e o império prosperarem, seu povo, a China, continuará sendo explorado. Robin ama traduzir e ama a Universidade, mas será que conseguirá viver em paz vendo os chineses definhando? Quando a guerra se tornar inadiável, de qual lado Robin lutará?
Babel é uma leitura densa, então não vá esperando um livro rápido e fácil de ler. Eu levei muito mais tempo para ler Babel do que costumo levar com livros do mesmo tamanho. Em muitos momentos, me senti lendo um livro acadêmico, técnico, são tantos termos, teorias e explicações para conceitos complexos que eu lia um capítulo por vez e precisava parar para pensar. Alguns trechos são revoltantes e difíceis de ler e as falas xenofóbicas e machistas são comuns. Por exemplo, quando o professor Lovell, tutor de Robin, lhe diz:
Preguiça e dissimulação são traços comuns nos indivíduos do seu povo. É por isso que a China continua sendo um país indolente e atrasado enquanto seus vizinhos avançam em direção ao progresso. Por natureza, vocês são tolos, têm a mente fraca e são pouco inclinados ao trabalho árduo. Você tem que lutar contra essas características, Robin. Tem que aprender a superar a impureza de seu sangue. Eu apostei alto na sua capacidade de fazer isso. Prove-me que valeu a pena ou compre você mesmo sua passagem de volta para Cantão.
E isso é na página 56, ta?! Imagina o resto do livro.
Essa história me fez pensar sobre tanta coisa. Nós, leitores, precisamos tanto das traduções para termos acesso a maioria dos livros que lemos e, às vezes, nem paramos para pensar no quão desafiador deve ser traduzir um texto, escolher as melhores equivalências e tentar manter o significado do texto original, sem distorcer a mensagem que o autor desejava passar. Basta uma palavra ser traduzida inadequadamente e todo um parágrafo corre o risco de ser distorcido. E será que isso é realmente possível? Traduzir sem distorcer? De acordo com um dos professores de Babel, não. Segundo ele: "os tradutores não transmitem uma mensagem, mas reescrevem o original. [...] a distorção é inevitável. A questão é como distorcer com ponderação."
Outro ponto muito interessante sobre Babel é que existem notas de rodapé ao longo de todo o livro. Porém, não são notas de rodapé comuns. É como se a pessoa que escreveu as notas fosse uma personagem à parte, com personalidade e opiniões próprias. Eu imaginava a própria Kuang como essa narradora à parte, aparecendo como narradora e personagem em seu próprio livro. Kuang que, inclusive, deve ser uma mulher brilhante que eu adoraria ter como amiga. Atualmente, a escritora está cursando doutorado em Literatura e Línguas do Leste da Ásia. Ou seja, a gata sabe do que tá falando.
Particularmente, gostei bem mais de Babel do que gostei de A Guerra da Papoula, mas acho que ambas as histórias demonstram muito bem o quão potente é a escrita da Kuang. Principalmente no primeiro terço da história, Babel me lembrou A História Secreta da Donna Tartt, já que, especialmente no início, Babel até pode ser chamado de Dark Academia (inclusive com a presença de sociedades secretas). Mas acho que o que Kuang criou é tão único e com características tão próprias que fica difícil enquadrar num só gênero. É, de certa forma, uma ficção histórica, porque resgata acontecimentos reais. É fantasia, mas pode frustrar os amantes do gênero, já que os elementos fantásticos aqui servem apenas como pano de fundo para outras discussões. É Dark Academia, porque se passa no ambiente acadêmico e tem essa vibe obscura.
Babel foi uma leitura lenta que me custou muitos dias, mas que eu não pude deixar de apreciar. O final foi um pouco corrido e acho que tinham elementos dessa história que poderiam ter sido melhor explorados, mas, mesmo assim, eu considero uma leitura que vale a pena. Recomendo a leitura, principalmente para quem busca um livro complexo que não vai ser facilmente esquecido. São quase 600 páginas (e em letras pequenas) de uma história cheia de nuances e debates éticos, morais, sociais, culturais, psicológicos e identitários. E são tantas camadas que eu sinto que dava pra criar um clube do livro só pra falar sobre Babel. A história está cheia de jogos de palavras e trocadilhos que eu fiquei tentando decifrar, mas confesso que não obtive 100% de sucesso. Por exemplo, a maioria dos personagens tem nomes que podem ser traduzidos (parcial ou integralmente) e eu fiquei pensando se isso foi intencional (creio que sim) e tentando ligar o nome (a palavra) ao personagem.
Valeu a pena passar tantas horas lendo Babel. A edição da Intrínseca está linda. Eu gosto da capa, da escolha elegante de cores e o livro é super maleável, daqueles que você consegue abrir totalmente sem estragar a lombada. A tradução está impecável. Nem imagino o quão desafiador foi para a Marina Vargas traduzir um livro que fala sobre o ato de traduzir e que mistura tantas línguas numa só história. Só me resta parabenizá-la por trabalho cuidadoso que ela fez.
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Mais um calhamaço da autora....repleto de fantasia, cultura simbolismos, palavras e magia.
ResponderExcluirEu como pessoa que pouco lê o gênero, me interessei e achei bem mais atraente que Guerra.
Ainda que muito revoltante o machismo e xenofobia precisam ser discutidos
Uma leitura que deve ser feita com tranquilidade,sem pressa .A autora mistura vários gêneros ,traz temas importantes.
ResponderExcluirÓtima resenha.
Eu estou de olho nesse livro desde que vi que era do mesmo nível ou até um pouco superior à trilogia da Papoula(que ainda não consegui comprar)
ResponderExcluirMas que linda resenha para tentar definir o que é essa leitura de Babel, que traz história, complexidade e ao mesmo tempo, elementos universais!
Quero demais ler!
Beijo
Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na flor
Ainda nem li guerra da papoula mas tenho muuuita curiosidade. Gostei muito dessa resenha sua, principalmente o inicinho ali.
ResponderExcluirNao sei pq, achava q era protagonista feminina tb nesse.
Espero ler em breve tb!
menina eu acho a tradução super importante, porque imagina o trabalho de manter o texto traduzido com o mesmo significado cultural de acordo com o país em que vc está lendo esse texto. sério, é um trabalho muito grande.
ResponderExcluireu tinha noção do falava babel mas essa é de fato minha primeira resenha sobre a obra e eu estou encantada com tudo sobre ela, vou tirar um tempo com calma pra ler esse livro porque sei que vou ter q me dedicar devido a densidade da história/trama
Oieeee,
ResponderExcluirTenho muita curiosidade em ler esse livro. Ainda não li A guerra da Papoula, mas vi muitos comentarios super positivos sobre os livros da autora. Esse parece ser uma leitura bem complexa.
amei a sua resenha! não sou fã de fantasia, mas me interesso muito por esse livro, pela temática e vibes dark academia, e como disse que não tem tantos elementos fantásticos, acho que vai me agradar!! já estou te seguindo <3
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