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17 de setembro de 2024

A Amiga Maldita, de Beatrice Salvioni: uma amizade improvável na Itália Fascista


"É difícil se livrar de um corpo que está em cima de você. Foi o que descobri aos 12 anos, enquanto escorria sangue do meu nariz e da minha boca e tinha a calcinha enrolada nos tornozelos." Assim começa A Amiga Maldita, primeiro romance da italiana Beatrice Salvioni. A história, narrada em primeira pessoa por uma menina chamada Francesca, se passa em 1935, numa Itália dominada pelo fascismo. Francesca narra o período de sua vida em que se tornou amiga de Maddalena, uma criança que fascina a protagonista por sua liberdade e autenticidade. 

Todos a chamavam de Maldita e ninguém gostava dela. Dizer o nome dela trazia azar. Era um bruxa, uma daquelas que grudam o hálito da morte no corpo da pessoa. Tinha o demônio dentro de si, e eu não deveria falar com ela.

Maddalena é, de fato, fascinante, até para nós, leitores adultos. Selvagem e destemina, a Maldita é tudo que Francesca gostaria de ser. De família abastada, Francesca teve uma criação mais rígida, precisa se vestir adequadamente, se comportar e ser delicada. Maddalena, por outro lado, é uma criança pobre, mau comportada, vestida com roupas inadequadas para uma garota e brincando com os meninos. Correm boatos na cidade de que Maddalena faz coisas ruins acontecerem, inclusive a morte de seu irmão mais novo.

A Amiga Maldita é um livro fascinante, que brinca com elementos do realismo mágico enquanto retrata problemas bem reais, como a guerra, o machismo e as desigualdades sociais. Maddalena e sua família ensinam Francesca a ser destemida, mas também a ensinam que nem tudo é o que parece e que talvez o perigo venha de onde menos se espera.

O período narrado no livro cobre menos de um ano e explora os altos e baixos da vida, Francesca realizada por ter um grupo de amigos e se sentindo a pessoa mais feliz do mundo, as descobertas da juventude, a guerra, as decepções, os erros e os perigos de ser uma menina com um corpo que começa a ganhar formas de mulher.

É lindo ver Francesca crescendo ao lado de Maddalena, seus sentimentos pela amiga, por vezes românticos e confusos, suas dúvidas sobre o real caráter da Maldita, sua primeira menstruação, seu primeiro beijo e tudo que ela vai aprendendo com a amiga que tanto a inspira. As coisas que Maddalena diz viram mantras para Francesca, como as frases "Eu não tenho medo de nada" e "Chorar era para os idiotas".

As certezas que Francesca possui também vão sendo desconstruídas. A família de Maddalena é mais crítica e questionadora do que a família da protagonista e isso permite que Francesca veja o outro lado da moeda, o lado sombrio e injusto da guerra, do fascismo e das regras de gênero. A família de Maddalena, mesmo não tendo boas condições financeiras, acolhe a menina e compartilha tudo com ela, principalmente o afeto. E é incrível assistir o mundo de Francesca se expandindo.

A Amiga Maldita lembra bastante outro livro de título semelhante e também de origem italiana, A Amiga Genial, de Elena Ferrante. Eu gostei até mais de A Amiga Maldita do que de A Amiga Genial. O livro também tem uma vibe semelhante com A Casa dos Espíritos (Isabel Allende) e A Sombra do Vento (Carlos Ruiz Zafón), histórias que brincam com elementos fantásticos e fazem com que a história tenha uma atmosfera onírica.

A autora soube muito bem provocar o leitor, fazendo a gente se questionar se certas coisas estão mesmo acontecendo, se são apenas coincidências ou se há uma relação de causa e efeito. Há uma cena muito boa em que algo acontece e Francesca tem sua confiança na amiga colocada a prova. Não vou contar exatamente o que acontece nem o desfecho, mas juro que senti tudo junto com a narradora, a dúvida, a insegurança, o medo e a culpa.

— Você a empurrou? — perguntei de um fôlego.
Aquela pergunta que não era minha me subiu à garganta, um sibilo temeroso que não me pertencia, como se, atrás de mim, houvesse outra pessoa a me guiar, como uma marionete, assustada e com medo, uma pessoa mesquinha - alguém que eu jamais desejaria ser.
O rosto dela relaxou e, de repente, a segurança se dissolveu.
— Está mesmo me perguntando isso?

Há tanto ódio no livro, de diferentes direções. O ódio da população pela Maldita, de sua mãe, que a culpa pela morte do filho mais novo, o ódio vindo da guerra, mas também há tanto amor. A família de Francesca tem uma empregada, Carla, que eu adoraria ter conhecido melhor. Carla é bondosa e gentil e sua presença na casa alivia o clima. O amor entre Maddalena e seus irmãos também é lindo de acompanhar e é devastador quando seu irmão é enviado para a guerra.

A cena que abre o livro é chocante, mas o livro não é linear. Na verdade, só vamos entender o contexto dessa cena já no final do livro, quase como um livro circular, que termina como começa. Infelizmente, o final de A Amiga Maldita me decepcionou. Fiquei com a impressão de que a autora estava com pressa de finalizar o romance e o final me pareceu corrido, incompleto e com bem menos qualidade que o restante da história. No geral, não me importo com final abertos, mas aqui isso me incomodou.

O mundo era feito de regras que não deviam ser quebradas. Era feito de coisas de adulto, enormes e perigosas, de erros irremediáveis que podiam levar você a morrer ou a ir parar na prisão. Era um lugar assustador, cheio de coisas proibidas, no qual você devia andar devagar e na ponta dos pés, tomando cuidado para não encostar em nada. Sobretudo se fosse mulher.

A Amiga Maldita foi uma grata surpresa para mim, um livro que me prendeu do início ao fim e que me garantiu boas reflexões e muitas marcações. Na orelha do livro, consta que o romance já está sendo adaptado para série televisiva. Não encontrei mais informações sobre a adaptação, mas fiquei feliz com a informação e tenho certeza que essa livro rendará uma adaptação igualmente excelente.

Título Original: La Malnata ✦ Autora: Beatrice Salvioni
  Páginas: 256 ✦ Tradução: Marcello Lino ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora

2 comentários :

  1. Depois de uma história intensa, densa e angustiante, ter um final corrido é de Fato muito decepcionante!
    Legal que vai ter adaptação! Espero que consiga transmitir toda a força desa história.
    Amanhã 18.09 no canal da Raffa Fustagno no YouTube, vai ter uma Live de discussão sobre A Amiga Maldita. As 20 horas

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  2. Um título que atordoa e uma capa, idem.
    Mas confesso que esse primeiro parágrafo da história, já causa de cara um certo desconforto, pois nossa mente viaja na mesma hora.
    Ainda não conhecia o livro, mas fiquei muito, mas muito curiosa!!!
    Com certeza, buscarei por ele!!!
    Beijo

    Angela Cunha Gabriel

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