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13 de setembro de 2024

Impostora: sobre Yellowface e a genialidade de R. F. Kuang

Depois de ter me apaixonado pela escrita e pela criatividade de R. F. Kuang com Babel, eu prometi pra mim mesma que não deixaria nenhuma lançamento dessa autora passar. A sua mais nova publicação no Brasil é Impostosa, um livro sobre plágio no meio literário, cujo título original é bastante explicativo. Yellowface é quando uma pessoa branca se passa por uma pessoa amarela. Essa prática já foi muito utilizada no cinema, onde atores brancos se caracterizavam e interpretavam personagens amarelos. Outra prática semelhante é o blackface, quando pessoas brancas interpretam pessoas pretas. A consequência mais óbvia dessas práticas é a estereotipação de pessoas não-brancas, assim como seu apagamento e exclusão.

Em Impostora, conhecemos Athena Liu pelos olhos de sua "amiga" e também narradora, June. O livro já começa impactante: "A noite em que presencio a morte de Athena Liu é a mesma em que comemoramos seu contrato de direitos audiovisuais com a Netflix." June nos fala sobre Athena e sua inveja fica evidente. Ambas são escritoras, mas o sucesso de Athena é esmagador e faz com que June sinta uma inveja sufocante.

A Athena é de fato perfeita. Perfeita até demais. Ela é rica, talentosa, bem-sucedida, bonita, culta e atraente. Até eu, enquanto leitora, senti uma pontada de inveja dela. Porém, June é bem maldosa e ácida em sua inveja, de uma forma desnecessária. Desnecessariamente cruel e mesquinha. Por outro lado, Athena parece sentir um afeto sincero por ela, mesmo que June não veja sentido nisso, já que não há nada que ela possa oferecer à Athena.

A morte da Athena é o que dá início aos eventos que serão narrados no livro. Athena morre de uma forma bem perturbadora, na frente de June que, mesmo apavorada, tem a frieza de pegar roubar o mais novo manuscrito da "amiga", que ela edita, complementa, modifica e publica como se fosse seu.

[...] trocamos um dos brancos malvados por um personagem chinês, e um dos trabalhadores chineses com mais falas por um fazendeiro branco que simpatiza com os imigrantes. Isso acrescenta a complexidade e a nuance humanista que talvez Athena não conseguisse enxergar por estar próxima demais do tema.

O Último Front, que June publica utilizando seu segundo e ambíguo nome, Song (intencionalmente querendo passar a impressão de ter descendência asiática,  apesar de ela negar que seja intencional), é um sucesso estrondoso, tanto com o público, quanto com a crítica. O romance aborda a participação da China na Primeira Guerra Mundial. June finalmente encontra o sucesso que tanto desejou e invejou. Mas até quando essa estratégia desonesta vai dar certo?

June é detestável e eu já odiava ela nas primeiras páginas. Mas ela também é interessantíssima enquanto narradora. Maldosa, manipuladora e invejosa, June está o tempo todo se dirigindo ao leitor para se explicar e justificar, ao mesmo tempo que diz coisas absurdas como "O mercado editorial escolhe um queridinho (alguém bonito o bastante, alguém descolado e jovem e, ah, qual é, vamos admitir que estamos todos pensando a mesma coisa, alguém “diverso” o suficiente) e então enche a pessoa de dinheiro e recursos." ou então: "Sei o que você está pensando. Ladra plagiadora. E talvez, já que tudo de ruim sempre tem que envolver raça, racista." Ou ainda: "É a internet que é problemática, não eu. É esse contingente de militantezinhos, esses brancos “aliados” querendo aparecer e os ativistas asiáticos procurando atenção; são eles que estão fazendo cena. Eu não sou a malvada. Eu sou a vítima."

Eu, que amo odiar um personagem, adorei essa narradora que é uma desgraçada consciente, ou seja, ela sabe que ela é escrota (palavra que ela mesma usa pra se descrever). June quer que o leitor a compreenda, mas não precisa que gostemos dela.

Inclusive, essa narradora que, em muitos momentos atua como uma narradora não confiável, me lembrou muito outro narrador que comete um crime e conta aos leitores as consequências disso: Raskólnikov de Crime e Castigo. Eu senti emoções semelhantes durante a leitura de Impostora ao que eu senti lendo Crime e Castigo do Dostoievski: o conflito entre querer que o crime seja descoberto e a ansiedade quando isso parece se aproximar.

Há um mistério que nos é apresentado logo no início do livro também. Isso, além do óbvio desenrolar dos fatos envolvendo o roubo do livro de Athena, me manteve interessada nessa leitura do início ao fim. A ousadia de Kuang, uma asiática dando voz a uma personagem branca que pratica yellowface, é subversiva. Kuang gosta de ser polêmica e já demonstrou isso em suas outras obras. Mas, arrisco dizer que, aqui, Kuang se superou.

O livro se desenrola de forma extremamente envolvente, explorando o passado das personagens e trazendo profundidade para a narradora, provocando o leitor a compreendê-la e passar pano pra ela. Outra provocação que Kuang faz é mostrar o lado sujo do mercado literário, o favorecimento de determinados autores, a arrogância, a visão de que o lucro está acima de tudo e de que não importa se o autor é uma boa pessoa, afinal, quanto mais polêmico, mais dinheiro ele trará para as editoras.

Eu devorei esse livro, li de madrugada, nos intervalos do trabalho, almoçando. Só não li no banho porque não queria estragar o livro. Eu senti tudo, o medo, a ansiedade, a raiva. E terminei aplaudindo a autora. O final é angustiante e flerta com a metalinguagem. Kuang é realmente fantástica. Estou até tentada a reler A Guerra da Papoula que, na época, eu não gostei tanto. Recomendo! Recomendo! Recomendo! LEIAM IMPOSTORA. FANTÁSTICO e REVOLUCIONÁRIO são as palavras que eu usaria pra definir esse livro.

E, pra complementar, vou anexar um vídeo aqui do criador de conteúdo Leo Hwan onde ele fala sobre o livro e também dá mais informações sobre a prática de yellowface.


Título Original: Yellowface ✦ Autora: R. F. Kuang
Páginas: 352 ✦ Tradução: Yonghui Qio ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora
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3 comentários :

  1. Já tinha visto de passagem a capa do livro.... mas não conhecia a premissa.
    E que premissa perfeita, hein!!!!
    Super instigante.
    June é detestavelmente fascinante

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  2. Um dos lançamentos que está no carrinho e eu só precisava de um empurrão assim, como essa resenha!!!!
    Não imaginava que a história iria entregar tanto, mas oh? Eu também amo odiar um personagem e esse ponto já me pegou de jeito!!!!
    Claro que vou comprar(assim que puder)
    Beijo

    Angela Cunha Gabriel

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  3. eu simplesmente amooooooooo odiar o personagem, principlamente quando o livro é envolvente. eu preciso muito desse livro, to só esperando uma promo pra pegar ele.
    eu li o começo de babel da mesma autora e nossa senhora a mulher escreve muito, to me organizando pra ler todos os livros dela e certeza q vou amar.
    obrigada por anexar o vídeo amiga (pri), vou ver correndo

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