Aceitas uma resenha bem problematizadora hoje? Pois é o que teremos. Prontas? Eu poderia resumir A Menina e a Pipa assim: uma professora francesa de luto resolve fazer algo que os europeus ricos adoram: ir para um país considerado de terceiro mundo para "se curar". No processo, ela descobre que pode, com seu dinheiro e seu conhecimento, ajudar os mais necessitados. O que é ótimo, claro, mas ela faz isso ao estilo europeu: se sentindo a pessoa mais incrível e altruísta do mundo.
Mas vamos começar do começo. A tal francesa se chama Léna e ela passou por uma experiência traumática. De início, o leitor não sabe exatamente o que aconteceu, mas entendemos que Léna perdeu o marido. Abalada e buscando se curar e se reconectar consigo mesma, ela decide passar um tempo vivendo no Golfo de Bengala, na Índia.
Um dia, Léna quase se afoga no mar e é salva por uma menina e uma mulher. Mais tarde, Léna descobre que a mulher em questão é a líder de um grupo local que se intitula Brigada Vermelha: um grupo de mulheres que praticam defesa pessoal e cuidam da segurança das mulheres da região. Toda a parte envolvendo a Brigada Vermelha é muito interessante. Se o livro fosse só sobre isso seria ótimo, mas a europeia não ia aceitar não ser o centro das atenções, né?!
Inclusive, a tal Brigada Vermelha existe mesmo e, pelo que pude checar, todas as informações contidas no livro são reais, incluindo a história de sua fundadora, Usha Vishwakarma, que, em 2016, foi reconhecida como uma das 100 mulheres de maior sucesso da Índia pelo Presidente do país. Segue uma explicação impactante apresentada no livro:
Aqui, o estupro é um esporte nacional, declara a chefe. E os criminosos nunca são castigados: as denúncias raramente levam a investigações, menos ainda quando as vítimas são de classes baixas. Diante da inércia das autoridades, as mulheres precisaram se organizar para garantir a própria segurança.
Léna acaba se aproximando dessas mulheres, que são muito mal vistas pelos locais, e da menina, Lalita, que não fala, mas demonstra um profundo interesse por Léna. Aos poucos, Léna percebe que não só Lalita, mas muitas meninas da região são analfabetas.
Bem-vinda à Índia, murmura. Ali, as meninas não estudam, ou se estudam é por pouco tempo. Não se considera útil educá-las. É preferível mantê-las em casa e ocupá-las com tarefas domésticas, antes de casá-las com alguém assim que atinjam a puberdade.
Léna decide mudar essa triste realidade dando aula para as meninas da região: "Em uma noite mais agitada do que as outras, Léna tem uma ideia. Uma ideia singular, surreal. Construir uma escola em Mahabalipuram."
Tudo muito legal, né?! Mulheres unidas, aprendendo a ler, escrever e lutar. No entanto, na versão de Laetitia, esse grupo de mulheres é liderado, organizado e coordenado por uma francesa bondosa. Quero deixar claro que não há nenhum problema na atitude da personagem. Espero que, na vida real, existam muitas Lénas fazendo coisas parecidas. Mas muito me incomoda a prepotência de criar uma personagem europeia e a retratar de forma quase angelical levando educação a crianças indianas tal qual uma grande salvadora branca.
"Salvador Branco" é um termo sarcástico e crítico que define uma pessoa branca que é descrita como libertadora, salvadora ou edificante para as pessoas não-brancas. Muito retratado na mídia, o salvador branco geralmente surge para resgatar pessoas não-brancas de uma situação de violência ou injustiça, normalmente impondo seus valores e vontades de forma vertical. Também é frequente que o salvador branco seja um branco viajando para um local "exótico".
Muitos filmes já foram criticados por retratarem e enaltecerem salvadores brancos. Entre eles: 12 Anos de Escravidão, Django Livre, Diamante de Sangue, Avatar, Duna, Gran Torino, O Último Samurai e A Grande Muralha. Sobre este último, a atriz Constance Wu fez o seguinte comentário: "Temos que parar de perpetuar o mito racista de que apenas um homem branco pode salvar o mundo. Não é baseado em fatos reais. Nossos heróis não se parecem com Matt Damon."
Ouso dizer que os heróis indianos também não se parecem com uma professora francesa traumatizada.
No livro, Léna está constantemente dando ordens às outras mulheres, dizendo o que elas devem ou não fazer. Um trecho específico que me incomodou bastante é quando Léna percebe que as meninas faltam às aulas quando estão menstruadas. O livro explica muito brevemente sobre como a menstruação é um tabu na Índia, mas a resolução é basicamente Léna fazendo as meninas prometerem que não faltarão às aulas quando estiverem menstruadas. Ah, ela também faz um discurso sobre a importância de os panos (que as meninas usam para se limpar e para absorver a menstruação) estarem sempre "cuidadosamente" lavados. Isso tudo logo depois de explicar que "No campo, as escolas não têm banheiro; as meninas precisam se afastar e se esconder na mata para fazer o procedimento. Elas têm vergonha e medo de ser descobertas, até agredidas." Ou seja, um problema complexo sendo solucionado de uma forma simples. A Salvadora Branca ataca novamente.
Não vou mentir: eu não acho que o plot de "encontrar a cura ajudando os outros" seja ruim. É de fato muito poético e tocante ver alguém se curando enquanto ajuda outras pessoas. Mas a forma messiânica como isso é feito é profundamente perturbadora e é difícil acreditar que histórias assim continuam sendo escritas. Vejam esse trecho:
As garotas com quem convive não terão nenhuma outra oportunidade de se educar: a escola é a única escapatória possível da prisão invisível na qual a sociedade deseja trancafiá-las. Léna terá que lutar contra essas correntes. Será preciso enfrentar os perigos, opor-se aos adversários com toda a sua inteligência e a sua determinação. O combate promete ser demorado.
A Léna sendo descrita como uma guerreira solitária lutando sozinha contra os costumes milenares de um país "com toda a sua inteligência e a sua determinação" chega a me dar vergonha.
Pra além de toda essa questão problemática, vale dizer também que o livro carece de profundidade. Em vários momentos, eu achei a narrativa um tanto quanto jornalística: sem emoção, apenas descrições. As intenções da protagonista não ficam claras, porque o livro não se importa em esclarecer seus sentimentos e pensamentos ao leitor.
Antes da metade do livro eu já estava completamente desinteressada e irritada com toda a importância que Léna dá a si mesma e às suas ideias geniais. Mesmo assim, insisti. O final não é de todo ruim. Na verdade, o final traz um tom levemente diferente, mais pessoal, focado na transformação que Léna teve e não na que supostamente causou. Se todo o livro tivesse tido esse tom mais pessoal, de uma pessoa se encontrando e se curando, teria sido muito melhor. O problema foi a insistência em transformar Léna numa heroína branca salvando pessoas não-brancas ao invés de focar apenas no fato de ela ser uma mulher em luto buscando se reconectar consigo mesma e se curar enquanto explora um país novo.
Enfim, se você não for uma chata problematizadora como eu, provavelmente você vai apreciar bem mais essa leitura. Acredito que, se você focar no aspecto pessoal do processo de cura da Léna, a leitura funcionará muito bem. Todo o trabalho de diagramação e tradução da Intrínseca está impecável, como sempre. A capa é linda, a leitura é confortável e eu não encontrei um errinho sequer.
Título Original: Le cerf-volant ✦ Autora: Laetitia Colombani
Páginas: 192 ✦ Tradução: Sofia Soter ✦ Editora: Intrínseca
Livro recebido em parceria com a editora
Assim que soube do lançamento da Laetitia fui correndo na wishlist adicionar A Menina e a Pipa.
ResponderExcluirA Trança primeiro livro dela que saiu aqui, foi uma leitura que mexeu muito comigo.
Ainda não li As Vitoriosas, apesar de ter o livro.
E agora vem outra leitura dela mas pelo visto não será tão emocionante como pensei